terça-feira, 15 de maio de 2012

Texto semanal — 14 a 18 / maio / 2012


Fernando Sabino

Leonora chegou-se para mim, a carinha mais limpa deste mundo:
          ― Engoli uma tampa de coca-cola.
          Levantei as mãos para o céu: mais esta agora! Era uma festa de aniversário, o aniversário dela própria, que completava seis anos de idade. Convoquei imediatamente a família:
          ― Disse que engoliu uma tampa de coca-cola.
          A mãe, os tios, os avós, todos a cercavam, nervosos e inquietos. Abre a boca, minha filha. Agora não adianta: já engoliu. Deve ter arranhado. Mas engoliu como? Quem é que engole uma tampa de cerveja? De cerveja, não: de coca-cola. Pode ter ficado na garganta – urgia que tomássemos uma providência, não ficássemos ali, feito idiotas. Peguei-a no colo: vem cá, minha filhinha, conta só para mim: você engoliu coisa nenhuma, não é isso mesmo? – Engoli sim, papai – ela afirmava com decisão. Consultei o tio, baixinho: o que é que você acha?
Ele foi buscar uma tampa de garrafa, separou a cortiça do metal:
― O que é que você engoliu: isto… ou isto?
― Cuidado que ela engole outra ― adverti.
― Isto ― e ela apontou com firmeza a parte de metal.
Não tinha dúvida: Pronto-socorro. Dispus a carregá-la, mas alguém sugeriu que era melhor que ela fosse andando: auxiliava a digestão.
          No hospital, o médico limitou-se a apalpar-lhe a barriguinha, cético:
          ― Dói aqui, minha filha?
          Quando falamos em radiografia, revelou-nos que o aparelho estava com defeito: só no pronto-socorro da cidade.
          Batemos para o Pronto-socorro da cidade. Outro médico nos atendeu com solicitude:
          ― Vamos já ver isto.
          Tirada a chapa, ficamos aguardando ansiosos a revelação. Em pouco o médico regressava:
          ― Engoliu foi a garrafa.
          ― A garrafa? ― exclamei. Mas era uma gracinha dele, cujo espírito passava muito ao largo da minha aflição: eu não estava para graças. Uma tampa de garrafa! Certamente precisaria operar ― não haveria de sair por si mesma.
          O médico pôs-se a rir de mim:

          ― Não engoliu coisa alguma. O senhor pode ir descansando.
          ― Engoli – afirmou a menininha.
          Voltei-me para ela:
          ― Como é que você ainda insiste, minha filha?
          ― Que eu engoli, engoli.
          ― Pensa que engoliu – emendei.
          ― Isso acontece – sorriu o médico: – Até com gente grande. Aqui já teve um guarda que pensou ter engolido o apito.
          ― Pois eu engoli mesmo – comentou ela, intransigente.
          ― Você não pode ter engolido ― arrematei, já impaciente: ― Quer saber mais do que o médico?
          ― Quero. Eu engoli, e depois desengoli ― esclareceu ela.
          Nada mais havendo a fazer, engoli em seco, despedi-me do médico e bati em retirada com toda a comitiva.
SABINO, Fernando. A vitória da infância. São Paulo: Editora Ática, 1994

Nenhum comentário:

Postar um comentário